A cena ocorreu em 2022, no início da construção de um parque linear – um calçadão com ciclofaixa e equipamentos para banhistas –, entre as praias do Quilombo, Pedrinha e Armação, em uma das principais regiões da cidade, próxima ao centro. Aguardada pelos frequentadores, a obra despertou uma correria entre empreiteiras e imobiliárias por terrenos que iriam se beneficiar da nova estrutura.
Esse foi um dos primeiros passos de uma remodelação que deve mudar completamente a cara da cidade nos próximos anos: de um pacato povoado que remonta a 1759, quando a economia da região se baseava na caça de baleias, à “Orlando brasileira”, como tem sido apelidado o projeto.
O trecho onde deve ficar o calçadão possui uma fina faixa de areia e outra de restinga – a vegetação rasteira e de árvores baixas que se desenvolve nas bordas da praia e que serve para "fixar" a areia e as dunas, protegendo as áreas litorâneas contra o avanço do mar e a erosão. São, por isso, consideradas áreas de preservação permanente, ou seja, de grande importância pelo serviço ambiental que prestam.
No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) tentou revogar a resolução que garantia proteção a esses espaços, mas ela foi restaurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em seguida.
Moradores do local já haviam ocupado a restinga em alguns pontos. Alguns vivem lá há décadas e plantaram espécies exóticas (como o sombreiro, árvore com copa larga que faz sombra em uma larga porção do solo, o que prejudica o crescimento da vegetação típica da restinga). A situação, contudo, agravou-se quando a prefeitura apareceu com tratores e retroescavadeiras removendo tudo pela frente: do muro das casas às espécies exóticas e a própria restinga.
"A máquina chegou e derrubou tudo, árvores antigas. Dói porque a natureza precisa ser preservada e até ajuda a deixar a praia mais bonita", disse na época outra moradora.
A prefeitura alega se tratar de área pública municipal, já os moradores dizem ser terrenos da União, com permissão para uso, e que anualmente pagam IPTU e taxa de ocupação para o governo federal. A decisão sobre se a prefeitura poderia ter entrado nessas áreas está na Justiça Federal, sem previsão de término. Atualmente as obras estão paralisadas. Mas nem prefeitura, União ou moradores foram responsabilizados pelas perdas ambientais.
A obra começou com 2,5 quilômetros de extensão, a partir de uma licitação realizada pela prefeitura em 2021, vencida pela empresa NAJ, uma empreiteira da cidade vizinha Navegantes. Quando chegou ao fim do perímetro contratado, a construção ainda continuou por mais um trecho, chegando a 5,5 quilômetros. O valor inicial, de R$ 5,8 milhões, passou para R$ 11,6 milhões com um novo aditivo.
A prefeitura disse à Pública que age de forma legal e que possui as permissões ambientais. No entanto, apresentou à Justiça, no processo judicial movido por moradores, apenas documentos informando à União que iria fazer a intervenção em áreas "já consolidadas" e que as obras não teriam "potencial degradante". As certidões apresentadas dizem que os lugares "não integram a Listagem de Atividades Sujeitas ao Licenciamento Ambiental", ou seja, não teriam que passar por licenciamento.
"O ponto a se examinar é a afirmação de que a área estava consolidada, o que quer dizer que já não haveria mais vegetação nativa no local. Isso não é verdade, e somente um estudo preliminar técnico poderia dar fundamento legal a esta afirmação", afirma Rogério Rossi Horochovski, consultor em direito ambiental e constitucional e conselheiro do Conselho Estadual de Meio Ambiente do Paraná. "Pela legislação vigente, a prefeitura deveria ter feito o levantamento, com equipe técnica, a partir de uma licitação. Mas ela não fez isso", diz.
A Pública solicitou, ainda em janeiro, à prefeitura comprovações de que foram feitos estudos sobre o impacto ambiental, mas recebeu apenas as certidões de dispensa de licenciamento.
A prefeitura disse também à reportagem que, no caso do vídeo em que o prefeito aparece operando uma retroescavadeira, ele estaria apenas destruindo um "muro com jardinagem". Para Horochovski, no entanto, está claro que a vegetação rasteira que aparece no vídeo é, sim, restinga. "É comum a restinga tomar a grama. Ela é bem resiliente", afirma.
O projeto do parque linear, conforme divulgado pela prefeitura, se limita a uma projeção de como ficaria a obra depois de concluída. De acordo com os croquis, o projeto é assinado pela engenheira civil Carla Dombek. Ela é irmã de Cláudia Dombek, gerente administrativa da Secretaria de Planejamento Urbano de Penha e a responsável pela obra do parque linear. Em suas contas no LinkedIn e no Facebook, Carla registra que foi funcionária da NAJ – a construtora que venceu a licitação – até abril de 2021 e que representou a empresa em eventos. A licitação foi feita em 2022, quando ela já havia deixado a empresa. Hoje, Carla é funcionária da prefeitura de Navegantes.
Junto às obras do parque linear, começaram a pipocar anúncios de novos edifícios arranha-céus que seriam construídos na orla da praia, o famoso "pé na areia".
Dois deles teriam torres de 50 e 43 andares. Ambos os projetos foram aprovados sem dificuldades pelo conselho municipal que legisla sobre obras de grande porte. Dos 17 integrantes do grupo, porém, 12 são ligados à prefeitura, construtoras ou imobiliárias.
Geralmente o conselho é presidido por Everaldo Lourival Francisco, superintendente do Instituto de Meio Ambiente da Penha (Imap), que representa o prefeito. Foi Francisco que dispensou licenciamento ambiental para o parque linear. Mas, no dia da votação, o próprio prefeito decidiu coordenar a sessão. "Ele só aparece em situações muito extraordinárias ou que ele tem interesse. Em três anos, a única vez que ele participou foi a dos prédios", disse o oceanógrafo Gilberto Manzoni, que faz parte do conselho.
Integrantes do conselho que compareceram às reuniões nos disseram que houve pressão para a aprovação dos empreendimentos, inclusive com a ida de comissionados da prefeitura ao local para demonstrar apoio. Francisco nega que isso tenha ocorrido e diz que todos os estudos relacionados ao meio ambiente foram apresentados. Sobre o parque linear, ele afirma que não pode comentar porque o caso está na Justiça, mas acredita que "a parte ambiental está correta". "Como cidadão penhense, posso afirmar que o calçadão é um sonho de quase todos os moradores", ele nos disse.?
Os outros participantes do conselho foram os então secretários do Turismo, Cleber Neumann, do Planejamento Urbano, Maurílio Duarte, do Desenvolvimento Sustentável, Tiago Moser, o procurador-geral da prefeitura, Janilto Raulino, o secretário do conselho, Maurílio Leite, o gerente do Imap, Heder Mafra, e Cláudia Dombek, a engenheira responsável pelo parque linear.
A Pública questionou o superintendente sobre imagens de trechos da restinga que foram suprimidos durante as obras da prefeitura, dentro e fora das casas de moradores. "Os especialistas podem fazer uma denúncia ao órgão ambiental", ele respondeu, apontando o órgão que ele mesmo preside. "As denúncias têm que ser formalizadas ao Imap e não apenas comunicada à minha pessoa. Ainda mais nesse momento que estou de férias", completou.
Da sociedade civil, os que votaram a favor dos empreendimentos são o representante da Associação Comercial de Penha, um empresário do ramo do turismo e o diretor de um resort que deve se instalar na cidade no futuro próximo.
As obras acabaram sendo suspensas na Justiça a pedido de uma associação de moradores, que alegou que não houve estudos suficientes sobre os impactos ao meio ambiente, podendo "gerar danos irreparáveis e/ou de difícil reversão".
Na nota enviada à Pública, a prefeitura defende a construção de arranha-céus na beira da praia, contanto que estejam a cem metros de distância da orla e em locais aprovados pelo Plano Diretor. Críticos, porém, apontam que o plano foi instituído em 2007, com validade de dez anos, e nunca foi revisto. O município diz ainda que é "impossível" que os prédios façam sombra na praia, porque eles são virados no sentido contrário, mas não responde sobre outros impactos ambientais.
O prefeito divulgou um vídeo em maio do ano passado, nas redes sociais, em que defende os arranha-céus com a justificativa de que eles ocupam o mesmo espaço de uma casa, mas geram mais impostos para arrecadação da prefeitura. "Balneário Camboriú, Itapema, Porto Belo, Bombinhas, Navegantes, Itajaí, Balneário Piçarras e Barra Velha [cidades no entorno] estão surfando essa onda da construção civil que gera emprego, gera renda", afirma no vídeo.
"Até poucos anos atrás, Penha era uma das únicas praias do litoral catarinense sem a existência de nenhuma edificação acima de três pavimentos", aponta um parecer técnico encomendado pelos moradores. "Mais recentemente ocorreu uma desenfreada corrida imobiliária que vem promovendo profundas alterações de leis, regulamentos e licenças municipais, sempre para promover e facilitar a obtenção de alvarás para edificações de grande altura. As consequências deste ataque especulativo vêm causando um forte desequilíbrio ambiental na faixa da orla", diz o texto.
"A enseada, antes de águas limpas que abrigavam centenas de tartarugas marinhas em suas formações rochosas submarinas, virou agora um cenário de dezenas de cascos destes animais mortos espalhados pela areia, restos de muros e contenções destruídos pela erosão pela falta das dunas protegidas pela restinga de formação geológica", segue o parecer.
Ainda na intenção de transformar Penha na "Orlando brasileira", a prefeitura tenta incluir a cidade na rota de cruzeiros e já diminuiu de 5% para 3% o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) cobrado de empreendimentos de entretenimento e lazer.
A última medida já atraiu interessados. Um deles é o Amazon Parks & Resorts, dos Estados Unidos, que deve construir um resort temático da Amazônia em uma área de 20 mil metros quadrados a cinco minutos de distância do Beto Carrero. O negócio terá 60 atrações inspiradas na floresta amazônica, com imitações e projeções de sua fauna e flora. Segundo a prefeitura, um dos pontos do estudo de impacto apresentado pelo empreendimento foi "conscientizar os visitantes da sua responsabilidade com o meio ambiente".
Com um valor de venda de R$ 400 milhões, o resort será construído em um local onde, segundo o oceanógrafo Gilberto Manzoni, havia mata nativa, que foi perdendo espaço nas últimas décadas para obras. Hoje, na área, estão a rodovia que dá acesso ao Parque Beto Carrero e empreendimentos que pulularam pela região.
Fonte: Agência Pública