O assunto foi novamente debatido pelos governadores em encontro com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, no final de novembro e nesta quarta-feira (4) pelos secretĂĄrios de Segurança PĂșblica de todo o paĂs durante a 92ÂȘ Reunião OrdinĂĄria do Conselho Nacional de SecretĂĄrios de Segurança PĂșblica (Consesp). Os dois eventos ocorreram em BrasĂlia.
No dia 10 de dezembro, estĂĄ programado um novo encontro com os governadores do Brasil para fechar pontos de convergĂȘncia e formalizar sugestões à PEC. O local e horĂĄrio do novo fórum não foram definidos,
A PEC altera a redação dos artigos 21, 22, 23 e 24 - que tratam das competĂȘncias da União, privativas ou em comum com os estados, municĂpios e Distrito Federal - e muda o artigo 144, sobre os órgãos que cuidam da segurança pĂșblica em todo o paĂs.
Com a PEC, o governo federal pretende dar status constitucional ao Sistema Ănico de Segurança PĂșblica (Susp), criado por lei ordinĂĄria em 2018 (Lei 13.675). AlĂ©m disso, quer levar para a Constituição Federal as normas do Fundo Nacional de Segurança PĂșblica e PolĂtica PenitenciĂĄria, unificando os atuais Fundo Nacional de Segurança PĂșblica e o Fundo PenitenciĂĄrio; e tambĂ©m quer aumentar as atribuições da PolĂcia Federal (PF) e da PolĂcia RodoviĂĄria Federal (PRF) - que passaria a ser chamada de PolĂcia Ostensiva Federal.
HĂĄ entre alguns governadores a preocupação de que a PEC possa esvaziar competĂȘncias estaduais sobre a segurança pĂșblica e sobre as polĂcias civis e militares. O ministro Lewandowski assegura que isso não ocorrerĂĄ.
Segundo ele, a PEC trata exclusivamente do papel da União: "não mexe em uma vĂrgula na competĂȘncia das polĂcias civis, na competĂȘncia das polĂcias militares, no comando que os governadores tĂȘm sobre estas forças e tambĂ©m não tem nenhuma ingerĂȘncia no que toca a direção das guardas municipais por parte dos prefeitos locais. Portanto, nós só estamos tratando das competĂȘncias federais".
O ministro participou na Ășltima terça-feira (3) de audiĂȘncias em comissões parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. De acordo com suas explicações, o propósito da PEC Ă© universalizar as polĂticas de segurança pĂșblica sem mexer na competĂȘncia de governadores.
Apesar do esforço de diĂĄlogo do ministro com governadores e parlamentares, o consenso em torno de medidas para a segurança pĂșblica serĂĄ difĂcil em ambiente polĂtico polarizado "que prejudica todo e qualquer debate sobre segurança pĂșblica", aponta o delegado AndrĂ© Santos Pereira, presidente da Associação dos Delegados de PolĂcia do Estado de São Paulo (Adpesp), em entrevista à AgĂȘncia Brasil.
Em sua avaliação, a PEC centraliza na União o regramento da atuação das forças de segurança. E impõe a todas as polĂcias a obrigatoriedade de cumprimento de normas estabelecidas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo federal.
Pereira antevĂȘ como primeira discordância a eventual obrigatoriedade de os policiais usarem câmeras corporais e manterem ligadas ao abordarem a população. "A câmera pode ser uma ferramenta importante para redução da letalidade policial", reconhece. Mas, segundo ele, "vai ter um polo polĂtico que vai dizer: 'ah, mas o policial vai se sentir inibido em realizar uma ação mais enĂ©rgica. Inclusive, quando estiver com sua vida sendo colocada em risco."
O delegado ainda se preocupa com o que chama de "ampliação das atribuições" das forças de segurança federais, e com o "esvaziamento das funções" das policiais civis e militares dos estados. Para ele, hĂĄ risco das mudanças causarem "cruzamento de competĂȘncias" e atĂ© conflitos. Ele, no entanto, avalia positivamente a PEC ao unificar o Fundo Nacional de Segurança PĂșblica e o Fundo PenitenciĂĄrio.
A advogada Carolina Diniz, da ONG brasileira Conectas Direitos Humanos (Programa de Enfrentamento à ViolĂȘncia Institucional), pensa de forma diferente do delegado e faz ressalvas à junção dos fundos. Ela teme que a unificação resulte na disputa de recursos, e o dinheiro hoje destinado à ressocialização de pessoas presas seja remanejado para o financiamento da repressão policial.
"A pauta do sistema prisional com todas suas especificidades vai ser cada vez mais apagada pela pauta de segurança pĂșblica." Para Diniz, o risco da "lógica policial" Ă© tornar os presĂdios estritamente peças de um "sistema de contenção social".
O redirecionamento da verba do Fundo PenitenciĂĄrio e outras medidas da PEC podem ajudar a escalar o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Por essas razões, a advogada alerta para a "ampliação do Estado policial".
Para ela, a PEC da Segurança PĂșblica desperdiça a oportunidade de mudar o perfil de atuação das polĂcias, incentivando mais ações de inteligĂȘncia e fortalecendo os mecanismos de controle externo.
"VĂĄrios estados que batem recordes no Ăndice de letalidade policial, com denĂșncias de tortura, tĂȘm polĂcias que estão sem controle algum. E nesses estados, as instituições que deveriam exercer controle, estão sem diretrizes muito claras, bem definidas, que coloquem o controle da atividade policial como uma das prioridades de atuação."
"Me parece que nós temos aĂ a sedimentação da lógica militarizada no combate à criminalidade. Ă como se nós estivĂ©ssemos em um grande campo de batalha. As vĂtimas desse combate a gente jĂĄ sabe quem são. Os relatórios nacionais e internacionais comprovam muito bem isso: são os pretos, os pobres e os moradores de ĂĄreas menos favorecidas.", acrescenta o psicólogo AdĂlson Paes de Souza, pós-doutorando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Na sua opinião, a PEC Ă© "enganosa" e não toca em pontos essenciais para discutir a segurança pĂșblica. Ao contrĂĄrio, ao transformar a PolĂcia RodoviĂĄria Federal em PolĂcia Ostensiva Federal, replica em nĂvel nacional o insucesso do modelo de duas polĂcias das unidades federativas - uma de carĂĄter judicial e de investigação, responsabilidade da PolĂcia Federal, e outra de policiamento preventivo e repressivo, que ficaria a carga da nova polĂcia ostensiva.
"Estamos reproduzindo o que nós temos nos estados e no Distrito Federal, que não Ă© eficaz, que não Ă© eficiente. Produz atrito, mas não produz segurança pĂșblica", diz. Segundo Souza, o modelo não tem bons resultados. "Nós temos a baixa elucidação de crimes contra a vida e uma baixĂssima elucidação de crimes contra o patrimônio. Ocorre impunidade pela ineficiĂȘncia de prevenção e, depois, de apuração e prisão dos autores dos fatos", critica o psicólogo ao acrescentar: "essa PEC não toca nisso."
Para Adilson de Souza, a polĂcia elucida poucos crimes, mas mata muitas pessoas. "Temos um novo tipo penal no Brasil, a morte do suspeito. Todo mundo Ă© suspeito e todos que são mortos pela polĂcia eram 'suspeitos'. Infelizmente, Ă© isso que acontece", lamenta.
De acordo com o especialista, a alta mortandade provocada pela polĂcia não tem preferĂȘncia partidĂĄria, pois ocorre em governos estaduais ditos "progressistas" e "conservadores". "Existe uma confluĂȘncia de ideias e prĂĄticas entre governos de esquerda e de direita quanto à preferĂȘncia uma polĂcia militarizada e uma polĂcia letal."
A taxa mĂ©dia da letalidade policial no ano passado foi de 3,1 mortes por 100 mil habitantes. Mas, em algumas cidades, esse indicador Ă© muito superior. As cidades com as maiores taxas de letalidade policial são JequiĂ© (BA), com 46,6 mortes por 100 mil habitantes, seguida por Angra dos Reis (RJ), com 42,4; MacapĂĄ (AP), com 29,1; EunĂĄpolis (BA), com 29,0; Itabaiana (SE), com 28; Santana (AP), com 25,1; Simões Filho (BA), 23,6; Salvador (BA), 18,9; Lagarto (SE), 18,7; e, LuĂs Eduardo Magalhães (BA), 18,5.
Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica (FBSP), ONG criada em meados dos anos 2000. O fórum calcula que, entre 2013 e 2023, a letalidade policial no paĂs aumentou 188,9%.
Para a antropóloga e cientista polĂtica Jacqueline de Oliveira Muniz, professora do Departamento de Segurança PĂșblica e do Mestrado de Justiça e Segurança PĂșblica da UFF, a letalidade policial propicia muitos votos. "Boa parte dos estados produzem polĂticas de insegurança, porque tĂȘm elevada rentabilidade eleitoral."
Conforme Muniz, que dirigiu o Departamento de Pesquisa, AnĂĄlise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança PĂșblica do MinistĂ©rio da Justiça no primeiro governo Lula, atividades preventivas e de investigação tĂȘm visibilidade menor do que as operações. "O arroz com feijão da segurança pĂșblica não produz filme, não Ă© instagramĂĄvel."
Com apelo popular, as grandes operações se tornaram em mais de um estado "a principal modalidade de emprego de recursos policiais". Para a professora, isso tem a ver com o que chama de "polĂcia de espetĂĄculo, polĂcia de ostentação." Mas, alĂ©m de produzir medo aos moradores onde ocorrem, as imagĂ©ticas operações policiais acabam por "exaurir a capacidade repressiva da própria polĂcia. Tem uma coisa que as pessoas precisam entender: o recurso repressivo Ă© escasso."
A especialista contabiliza: "para fazer uma operação 100 policiais Ă© preciso provisionar cerca de 400 policiais, porque os policiais tĂȘm turnos e escalas de trabalho. Mobilizar tantas pessoas gera escassez de capacidade da própria organização prover policiamento cotidiano para a população. Na prĂĄtica, uma polĂcia que fica brincando de sĂndrome do cabrito - sobe e desce o morro, mas não permanece - cede lugar para que o crime organizado faça o policiamento convencional."
Como outras fontes ouvidas pela AgĂȘncia Brasil, a professora Jacqueline Muniz considera positivo dar status constitucional ao Sistema Ănico de Segurança PĂșblica (Susp), mas apesar do nome, a PEC em discussão entre o governo federal e os governadores não espelha o Sistema Ănico de SaĂșde (SUS), estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Para o funcionamento do SUS, a Constituição "não estabelece que ao hospital tal compete fazer tal coisa. Ou ao posto de saĂșde tal compete fazer tal coisa. No SUS, não são corporações que adquirem status quo. O que estĂĄ definido no SUS são as competĂȘncias dos entes federados, o que dĂĄ capacidade de gestão ao prefeito, ao governador e ao presidente legitimamente eleitos", lembra a professora.
Para ela, a PEC em discussão mantĂ©m o que jĂĄ existe na legislação atual de segurança pĂșblica: "monopólios policiais - o que cabe a PM fazer, o que cabe à PolĂcia Civil, à PF, à PRF fazer e às guardas municipais." De acordo com a especialista, a dificuldade em fazer "reformas estruturais" na segurança pĂșblica estĂĄ nos atores empoderados do campo. "As instituições policiais são mais fortes que os governos eleitos."
No caso do Susp, Jacqueline Muniz reforça que "Ă© necessĂĄrio pensar em competĂȘncias partilhadas, não apenas as exclusivas, entre União, estados e municĂpios. Por que Ă© preciso ter competĂȘncias partilhadas? Porque se por um acaso tiver uma greve, uma tentativa de tomada de poder, um golpismo qualquer, a sociedade não Ă© paralisada, nenhum Estado Ă© paralisado."
Preocupação semelhante tem o sociólogo Luis FlĂĄvio Sapori, professor da PUC Minas e porta-voz do Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica. "Ă fato que o governo federal precisa, sim, de uma polĂcia ostensiva que possa atuar em situações, por exemplo, de greves de polĂcias estaduais. Uma força policial federal que possa ser mobilizada em momentos de crise da segurança pĂșblica dos estados."
Atualmente, esse papel cabe à Força Nacional de Segurança PĂșblica, criada em 2004. A PEC proposta pelo governo federal Ă© omissa em relação à manutenção dessa força e prevĂȘ que suas atribuições serão desempenhadas pela futura PolĂcia Ostensiva Federal derivada da PRF. "Não tem sentido ampliar as atribuições da PolĂcia RodoviĂĄria Federal mantendo a Força Nacional."
Sapori, que acumula experiĂȘncia no comando de secretarias de segurança municipal e estadual, teme que a PEC possa ter como efeito "corporativismo" e "sobreposição' das organizações policiais. "Nós vamos criar forças federais muito competitivas e antagônicas entre si. Isso gera um modelo policial federal desarticulado."
Para ele, "a medida mais adequada seria transformar a Força Nacional em uma polĂcia efetiva e ostensiva de reserva, que pudesse ser mobilizada quando necessĂĄrio. Uma Força Nacional com contingente, estrutura e comando próprios, e com carreiras especĂficas."